O QUE É A HIPERPLASIA CONGÉNITA DA SUPRARRENAL?
A Hiperplasia congénita da suprarrenal (HCSR) é um grupo de distúrbios autossómicos recessivos causados por defeitos enzimáticos das vias de esteroidogénese, comprometendo a biossíntese de corticosteroides pela glândula suprarrenal.
O QUE CAUSA A HIPERPLASIA CONGÉNITA DA SUPRARRENAL?
Cerca de 90-95% dos casos de Hiperplasia Congénita da Suprarrenal são causados pelo défice da enzima 21-hidroxilase, provocado pela mutação no gene CYP21A2 localizado no cromossoma 6p21.3. Mutações noutras localizações das vias de esteroidogénese, nomeadamente défice das enzimas 17-alfa-hidroxilase, da 3-beta-hidroxisteroide desidrogenase, da 11-beta-hidroxilase, e da oxidoreductase do citocromo P450 resultam em variantes mais raras de HCSR.
QUAL A SUA FREQUÊNCIA?
No que diz respeito à Hiperplasia Congénita da Suprarrenal por mutação do CYP21A2, a forma clássica apresenta uma incidência estimada de 1/10.000 a 1/15.000. A forma não clássica do défice de 21-hidroxilase é mais comum, com uma incidência estimada de 1/500 a 1000 nascimentos.
APRESENTAÇÃO CLÍNICA - SINAIS E SINTOMAS
1. Forma clássica
1.1. Perdedora de sal
Esta forma constitui 75% dos casos da forma clássica de HCSR, encontrando-se a atividade enzimática extremamente diminuída (0-1%). Apresenta manifestações clínicas resultantes quer do défice de cortisol, quer da deficiência de mineralocorticoide, pela falência da conversão de progesterona em desoxicorticosterona na zona glomerulosa do córtex suprarrenal. Nesta variante, os recém-nascidos comumente apresentam nas duas primeiras semanas de vida uma crise perdedora de sal, caracterizada pela presença de hipotensão, vómitos, desidratação, diminuição da ingestão alimentar, hipoglicemia, ausência de ganho ponderal, letargia e sintomas sepsis-like. Analiticamente, podem também apresentar hiponatremia e hipercaliémia.
1.2. Virilizante simples
Nesta forma de HCSR, um certo nível de função enzimática é preservado (1-5%), de modo que a produção de aldosterona é suficiente para prevenir a perda de sódio e a deficiência de cortisol não é tão pronunciada. Em termos clínicos, nos fetos do sexo feminino afetados, o aumento do estímulo da ACTH para a produção de androgéneos condiciona uma virilização dos genitais, podendo provocar, dependendo da gravidade, hiperplasia do clítoris, fusão dos lábios, e desenvolvimento de um seio urogenital, levando a ambiguidade sexual ao nascimento. No caso dos indivíduos do sexo masculino, estes são fenotipicamente normais ao nascimento, sendo muitas vezes subdiagnosticados. Durante a infância, podem apresentar sinais de pseudopuberdade precoce, nomeadamente aparecimento de pelos púbicos e aceleração do crescimento, com encerramento prematuro das epífises, secundários ao excesso de androgéneos.
2. Forma NÃO clássica
Esta forma de HCSR é muito mais comum que a forma clássica e manifesta-se mais tardiamente, de uma forma mais suave, geralmente no final da infância ou início da vida adulta. Os sintomas relacionados com esta forma menos grave da doença são variáveis e podem ser progressivos com a idade, variando de indivíduos assintomáticos a doentes com aceleração do crescimento, adrenarca precoce, acne, hirsutismo e alteração da fertilidade. Esta variante é uma das causas secundárias de SOP, que apresenta uma prevalência estimada nesta patologia de 1-3%.
COMO É REALIZADO O DIAGNÓSTICO?
1. DIAGNÓSTICO BIOQUÍMICO
O diagnóstico da deficiência de 21-hidroxilase deve ser considerado em recém-nascidos com ambiguidade sexual e perda de sal, hipotensão ou hipoglicemia. Analiticamente, a hiponatremia e hipercaliemia com aumento da atividade plasmática da renina são encontradas na forma perdedora de sal.
As concentrações plasmáticas de 17-OHP estão significativamente aumentadas na forma clássica de deficiência de 21-hidroxilase.
A prova de synacthen (tetracosactídeo), que consiste na administração endovenosa de 250μg de um análogo sintético dos primeiros 24 aminoácidos do segmento N‐terminal da adrenocorticotrofina (ACTH), é o gold‐standard para confirmar a existência de défice de 21‐hidroxilase, e deve ser realizado para avaliar a reserva adrenal de glucocorticoides. Nesta avaliação dinâmica, determinam-se as concentrações de 17-OHP e cortisol basais e aos 60 minutos após o estímulo. Os resultados dos doseamentos após o estímulo estão invariavelmente aumentados nas formas clássica e não clássica de HCSR (17 OHP >1100 ng/dL). Nos doentes heterozigotos, os valores após estimulação situam-se entre 330-1000 ng/dL. No sexo feminino, uma concentração basal de 17-OHP < 150ng/dL na fase folicular do ciclo menstrual exclui o diagnóstico da forma não clássica de HCSR.
Mais tardiamente, o aumento dos níveis de androgéneos da suprarrenal (DHEAS e androstenediona) são encontrados nos doentes com precocidade sexual e fenótipo de SOP.
2. DIAGNÓSTICO GENÉTICO
A genotipagem do CYP21A2 confirma o diagnóstico clínico e bioquímico, sendo uma importante ferramenta adjuvante.
A deficiência de 21-hidroxilase é herdada como traço autossómico recessivo. O gene CYP21A2 está localizado no braço curto do cromossoma 6 (6p21.3) e pela sua localização no locus do HLA, está sujeito a elevada frequência de recombinação genómica. Aproximadamente 65-75% dos doentes com HCSR são heterozigotos compostos para as mutações causadoras de doença. A correlação genótipo-fenótipo na HCSR por défice de 21-hidroxilase está bem estabelecida, sendo que o fenótipo se correlaciona com o alelo com a mutação menos severa e, por conseguinte, com atividade de 21-hidroxilase residual.
O diagnóstico pré-natal é possível através da realização de uma biópsia de vilosidades coriónicas ou amniocentese.
QUAL O TRATAMENTO?
1. FORMA CLÁSSICA
Os objetivos do tratamento do défice de 21-hidroxilase incluem a substituição glucocorticoide e mineralocorticoide, prevenindo a ocorrência de crises perdedoras de sal, assim como a normalização dos androgéneos adrenais, com vista a um crescimento e maturação normais. A terapêutica de substituição deverá ser feita de forma precisa, visto que o sobretratamento pode levar a atraso do crescimento e da puberdade, obesidade e aumento do risco cardiovascular na idade adulta, enquanto o subtratamento poderá resultar em baixa estatura por encerramento prematuro das epífises, puberdade precoce e distúrbios da fertilidade.
A terapêutica de substituição utilizada inclui a hidrocortisona nas doses de 10-15mg/m2 por dia dividido em três tomas, e a fludrocortisona (na forma clássica) em doses superiores nos primeiros anos de vida, com redução subsequente ao longo do curso dos anos. Os esteroides de longa duração de ação, como a prednisona, prednisolona e dexametasona podem ter também lugar, particularmente pela sua eficácia na supressão da secreção de androgéneos.
2. FORMA NÃO CLÁSSICA
No geral, os indivíduos assintomáticos com a forma não clássica de HCSR não necessitam de tratamento.
A terapêutica glucocorticoide nesta forma visa, sobretudo, a supressão do excesso de secreção de androgéneos adrenais quando estes provocam uma aceleração do crescimento com impacto na estatura final das crianças e, no sexo masculino, um hipogonadismo hipogonadotrófico. Nas mulheres com hiperandrogenismo, a terapêutica glucocorticoide pode não ser suficiente para controlar o hirsutismo, podendo haver necessidade de adicionar terapêutica antiandrogénica (acetato de ciproterona, espirolonactona, em conjunto com contraceptivo oral contendo estrogéneos).
3. CONTEXTO PRÉ-NATAL
No contexto pré-natal, a terapêutica com dexametasona pode ser considerada de forma a evitar a virilização dos genitais em fetos do sexo feminino, visto que este fármaco não é inativado pela 11βHSD2 placentária, atravessando-a e permitindo a supressão do eixo hipotálamo/hipófise/suprarrenal do feto.
QUAL O PROGNÓSTICO?
Em doentes com HCSR que desejam engravidar, deve proceder-se à genotipagem do parceiro antes da conceção, de forma a detetar formas não clássicas da doença ou casos heterozigotos e assim permitir um correto aconselhamento genético.
Com o tratamento adequado, os doentes com HCSR podem ter uma esperança de vida normal.
Referências
- Congenital adrenal hyperplasia. You and your hormones from the Society foir Endocrinology. April 2020. Disponível em:
https://www.yourhormones.info/endocrine-conditions/congenital-adrenal-hyperplasia/
Acesso em 20/09/2021 - Congenital adrenal hyperplasia. National Organization for Rare Disorders. NORD. Disponível em:
https://rarediseases.org/rare-diseases/congenital-adrenal-hyperplasia/
Acesso em 20.09.2021 - Melmed S KR, Rosen C, Auchus R, Goldfine AB. The Adrenal Cortex. In: Elsevier, editor. Williams Textbook of Endocrinology. 14th ed. Philadelphia; 2019. p. 527-34.