A terapêutica de reconstituição imunológica, amplamente utilizada em diversas situações clínicas, caracteriza-se por uma recuperação dos números de células imunes após uma fase de depleção.
A disfunção tiroideia ocorre frequentemente como uma complicação auto-imune desta terapêutica, especialmente em indivíduos com esclerose múltipla tratados com alemtuzumab (34 a 41%). Menos frequentemente, é despoletada por terapêutica antirretroviral altamente eficaz em doentes com VIH ou por transplante de medula ou de células-tronco hematopoéticas. A disfunção tiroideia associada tem habitualmente um início tardio e variável, ocorrendo habitualmente 16 a 23 meses após alemtuzumab, 8 a 33 meses após início de antirretrovirais em indivíduos com VIH e 2.5 a 4.3 anos após transplante de medula ou de células-tronco.
Na disfunção tiroideia induzida por alemtuzumab e por antirrerovirais, o distúrbio mais comum é a Doença de Graves, um hipertiroidismo de etiologia auto-imune, seguido por hipotiroidismo e tiroidite auto-imune. Por outro lado, a Doença de Graves é rara após transplante de medula ou de células-tronco hematopoéticas. Neste último, a disfunção mais frequente é o hipotiroidismo, com importante contributo de irradiação da glândula tiroideia durante a preparação para o transplante.
A disfunção tiroideia auto-imune induzida pela terapêutica de reconstituição imunológica caracteriza-se por um aumento dos anticorpos anti-recetor da hormona tireoestimulante (TSH) (TRAb) e anticorpos anti-tiroperoxidase (TPOAb). Os TRAb são habitualmente anticorpos estimulantes, associando-se a hipertiroidismo (Doença de Graves). No entanto, na disfunção tiroideia associada a esta terapêutica, é frequente a existência de TRAb bloqueadores, responsáveis por 30 a 50% dos casos de hipotiroidismo nestes doentes. Atendendo à coexistência de TRAb estimuladores e bloqueadores, é frequente uma apresentação flutuante, com oscilação entre hiper e hipotiroidismo.
Recomendações antes da terapêutica de reconstituição imunológica
Atendendo ao elevado risco de desenvolvimento de disfunção tiroideia, recomenda-se avaliar a sua função previamente ao início da terapêutica, através do doseamento de TSH. A presença de disfunção prévia exige uma monitorização apertada após início de terapêutica. A presença de auto-imunidade tiroideia associa-se a um maior risco de desenvolver disfunção. No entanto, o seu doseamento não está indicado por rotina em doentes eutiroideus, previamente ao início da terapêutica.
Monitorização em doentes sob terapêutica de reconstituição imunológica
Face ao elevado risco de disfunção tiroideia, recomenda-se o doseamento de TSH de 3 em 3 meses após início da terapêutica com alemtuzumab, mantendo vigilância ativa durante 4 anos após o final do tratamento. Adicionalmente, recomenda-se repetir TSH em 1 mês se TSH baixa (0.10 a 0.39mU/L) ou em 2 semanas, juntamente com doseamento das hormonas tiroideias (LT4 e LT3), se TSH elevada ou muito baixa (<0.10mU/L). Deve ainda explorar-se a presença de sintomas e sinais sugestivos de disfunção tiroideia.
Face à baixa incidência em doentes sob terapia antirretroviral ou transplante, o doseamento de TSH está apenas recomendado na presença de sintomas e/ou sinais sugestivos de disfunção tiroideia.
Seguimento em caso de disfunção tiroideia após terapêutica de reconstituição imunológica
Recomenda-se a referenciação a um endocrinologista em 2 a 4 semanas em caso de disfunção tiroideia confirmada. O doseamento de TRAb e TPOAb está recomendado perante a sua presença. A realização de ecografia tiroideia ou cintigrafia não está recomendada por rotina, embora possam ser úteis em determinadas situações.
Recomenda-se iniciar terapêutica dirigida assim que possível perante presença de sintomas ou situações de risco elevado (gravidez, doença cardiovascular). Nos restantes casos, o início do tratamento deverá ser protelado por 3 meses, de forma a determinar se a disfunção resolve espontaneamente ou se flutua.
Em caso de hipertiroidismo persistente, recomenda-se terapêutica com anti-tiroideus de síntese durante pelo menos 12 meses consecutivos. A combinação de anti-tiroideus com levotiroxina, também conhecida por “block and replace” pode ser considerada em situação de disfunção tiroideia flutuante. Em alguns casos refratários poderá ser necessário recorrer a iodo radioativo ou tiroidectomia total.
Em caso de hipotiroidismo franco, deve ser iniciada terapêutica com levotiroxina, assim como em situações de hipotiroidismo subclínico, mas persistente (> 3 meses). A função tiroideia deve ser reavaliada frequentemente, pelo menos a cada 3 meses.
Na presença de tiroidite, recomenda-se uma abordagem conservadora, com controlo sintomático. No entanto, deve manter-se uma vigilância apertada, atendendo ao elevado risco de transformação noutra forma de disfunção tiroideia.
A prevalência de disfunção tiroideia associada à terapêutica de reconstituição imunológica poderá aumentar nos próximos anos, atendendo a que o alemtuzumab é um fármaco recente e com efeitos a longo prazo. A sua apresentação é variável, constituindo o seu seguimento e tratamento um verdadeiro desafio. É de extrema importância estar alerta para estas complicações, de forma a antecipar o seu diagnóstico e tratamento, assim como fornecer uma vigilância adequada.
mensagens-chave:
- A disfunção tiroideia ocorre frequentemente como uma complicação auto-imune da terapêutica de reconstituição imunológica, especialmente em indivíduos com esclerose múltipla tratados com alemtuzumab (34 a 41%) e pode ter um início tardio.
- Na disfunção tiroideia induzida por alemtuzumab e por antirrerovirais, o distúrbio mais comum é a Doença de Graves, um hipertiroidismo de etiologia auto-imune, seguido por hipotiroidismo e tiroidite auto-imune.
- Na disfunção tirodeia induzida por alemtuzumab é frequente uma apresentação flutuante, com oscilação entre hiper e hipotiroidismo.