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A Endocrinologia e Eu - André Filipe Couto de Carvalho

A Endocrinologia e Eu
Ed.
Julho 2023

O desafio foi produzir um pequeno texto que nos resuma e enfoque as áreas humanitárias do meu percurso pessoal e profissional. Eis o que me surgiu.

Nascido no Porto numa família imbuída de espírito de revolta contra as injustiças e com o peso de uma Guerra Colonial, foi natural decidir um caminho na Medicina com interesse humanitário. Cedo nesse percurso envolvi-me em estágios extracurriculares longe do “conforto” da Europa dos anos 90. As férias escolares foram usadas para conhecer a realidade de cuidados de saúde longe da europa ocidental, primeiro em Jaffa (Israel) e depois em Alexandria (Egipto). Estas experiências e o gosto pela leitura, que sempre me acompanhou, fortaleceram a minha ideia primordial de querer conhecer outras realidades de perto. E foi assim que entrei no internato complementar em Endocrinologia. Porém, mantive a ideia de participar numa missão humanitária, cuja possibilidade só surgiu durante o meu último ano de internato, em 2008, através de uma organização não governamental (ONG) portuguesa em São Tomé e Príncipe. Não perdi um minuto e aceitei, pelo que interrompi o internato durante 6 meses e parti.

Chegar à ilha de São-Tomé em plena época das chuvas e integrar como médico “generalista” todos os cuidados de saúde do distrito de Caué, no sul da Ilha foi difícil. A humidade média do ar era sempre superior a 90%, o “hospital” onde trabalhava, à semelhança de toda a vila de São João de Angolares, não tinha eletricidade, a água para abastecimento humano era de um poço impróprio para consumo, o equipamento provinha maioritariamente dos anos 60 e a farmácia era mais limitada do que a lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial de Saúde… Foram dias de trabalho árduo em condições que nunca tinha encontrado. Tinha a cargo o apoio médico ao Hospital e Maternidade de São João de Angolares, mas também a todas unidades de saúde comunitárias do distrito. Felizmente, tinha comigo uma equipa de enfermagem são-tomense experiente e excecional, mas era o único médico para os partos à luz das velas, para tratar as crises asmáticas com salbutamol e corticóides apenas disponíveis em comprimidos, as pneumonias graves com um dos dois antibióticos disponíveis (gentamicina ou ampicilina) e as desnutrições calórico-proteicas de crianças apenas com dietas culinárias adaptadas… Mas também para fazer consultas com vista para o mar imenso, aceitar agradecimentos saborosos em fruta-pão e jaca, e receber abraços e sorrisos sinceros de quem não tem nada… Um mundo inteiro de distância do hospital da minha Invicta.

Antes e depois desta experiência, e já dentro de colaborações entre ONGs locais com a Universidade do Minho onde entretanto abracei uma equipa de investigação e de docência, e a Universidade do Porto, fui trabalhando com outros países lusófonos. Ainda como interno, e depois como especialista, usei dias de férias e para formação na Guiné-Bissau. Um país cujo índice de desenvolvimento humano o coloca no 177º lugar com uma mortalidade infantil próxima dos 50/1000. Aqui a dureza das condições talvez fosse maior do que em São Tomé e Príncipe, mas foi sempre amaciada pelas pessoas que nos recebiam de braços abertos com tudo o que (não) tinham. Na primeira destas “mini-missões” começamos por elaborar um mapa topográfico dos vários poços usados para consumo na ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós, e da qualidade bioquímica e microbiológica das suas águas. Foram centenas de colheitas processadas in-loco com um minilaboratório que conseguimos montar, mesmo que a eletricidade fosse intermitente alimentada por um gerador chinês de segunda categoria e gasóleo duvidoso. Foi também nessa altura que pensamos em realizar, de forma piloto, um projeto de Endocrinologista – a avaliação do grau de carência de iodo na Guiné-Bissau. Colhemos assim as primeiras urinas de crianças em idade escolar em Bolama e testamos um método semi-quantitativo de determinação de iodúrias num quarto de pensão à luz das velas enquanto a energia elétrica mal servia para manter os equipamentos de microbiologia (estufas e refrigeração) a funcionar.

Regressei várias vezes à Guiné-Bissau para completar este projeto. Uma das quais finalmente com um ecógrafo portátil cedido pela Universidade do Minho e já com um método quantitativo de medição de iodúrias, entretanto montado no Laboratório de Hidrobiologia da Universidade do Porto, ou seja, um trabalho de investigação a sério. Circulamos durante semanas por várias regiões com a “casa” e o gerador às costas. Avaliamos volumes tiroideus e iodúrias de centenas de crianças em idade escolar e recolhemos milhares de amostras de água de poços para consumo humano. Simultaneamente realizávamos consultas e mini-formações pelos várias unidades de saúde comunitárias e hospitais locais, onde pernoitávamos. Estafante, mas muito enriquecedor. Deste projeto saiu finalmente a publicação que serve de referência atual para a Organização Mundial da Saúde na definição do grau de iodo-carência da Guiné-Bissau.

Um dos últimos regressos à Guiné-Bissau foi em 2015. Desta vez para além das consultas e formações ministradas nos vários hospitais locais, participei na primeira avaliação populacional da prevalência da Diabetes mellitus e da obesidade. Um aparente paradoxo, mas que visivelmente já sobrecarrega ainda mais os frágeis sistemas de saúde de muitos países africanos. Daqui saíram muitos amigos, imagens inesquecíveis de um Dia Internacional da Diabetes passado em Bissau “a fugir” da multidão, conhecimento científico sobre o real peso destas patologias na sociedade urbana guineense, um artigo na Revista da SPEDM e uma tese de mestrado da médica pediatra guineense.

Endocrinologia, Trabalho Humanitário e de Investigação em Saúde. Foram das melhores decisões profissionais da minha vida.