A relação entre a Endocrinologia e eu foi circunstancial. Remonta à escola primária quando foi opção de meus pais eu não realizar dois anos letivos num só o que, ao ter acontecido, se viria a refletir na impossibilidade da sua escolha no ano correspondente de acesso à especialidade. O momento seguinte foi o da decisão da escolha da especialidade que foi alicerçada num frágil sorteio entre cinco especialidades, em que a Endocrinologia saiu vencedora.
Licenciei-me em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Desde então sempre trabalhei nos Hospitais da Universidade de Coimbra, atualmente um dos polos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Colaborei, desde médica interna da especialidade, na lecionação da disciplina de Endocrinologia na FMUC onde realizei o doutoramento e onde exerço funções de regente da Unidade Curricular de Endocrinologia.
Coloquei, como uma opção de escolha a Endocrinologia-Nutrição, porque, entre outros fatores, na minha formação pré-graduada tinha tido professores de Endocrinologia que muito me marcaram positivamente.
Em 1989, ingressei no internato da especialidade, no Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo dos HUC. Nesse tempo, a Endocrinologia era uma especialidade médica pouco conhecida. Inicialmente observava que, para muitos, era difícil verbalizar a sua designação e o seu significado só era compreendido quando se informava que a especialidade estava relacionada com a diabetes, obesidade, doenças da tiroide, hormonas, sabe-se lá o que é que isso quereria dizer.
Tive o privilégio de acompanhar o seu desenvolvimento desde a era do estudo à cabeceira do doente, da semiologia, da pesquisa e informação em suporte de papel até à era molecular, digital e da inteligência artificial, num serviço que muito considero. Este acompanhamento no tempo deu-me um conhecimento histórico, permitindo-me uma visão global e amadurecida. A este propósito refiro um acontecimento que me sucedeu e que até hoje me acompanha, com um colega mais experiente, uma das referências da Endocrinologia nacional. Aconteceu que fui convidada para realizar uma palestra sobre resistência à insulina e doença metabólica. Estávamos a dar os primeiros passos nesta área e pareceu-me, com a inocência e inexperiência dos mais jovens, que tinha realizado um trabalho interessante, no sentido de que tinha apresentado os últimos artigos, plenos de grandes novidades. No final, o colega interpelou-me: ‘como é que manifestou tantas certezas nas afirmações que fez?’. Na altura, não percebi inteiramente o que me queria transmitir, mas, ao longo do tempo, não mais o esqueci. Esta é uma mensagem que gostaria de deixar aos mais jovens tão entusiastas das certezas e das tão necessárias, mas não absolutas, recomendações clínicas. Verdade absoluta talvez só a morte.
Foi-me atribuída uma área de diferenciação na neuroendocrinologia, o que vinha ao encontro das minhas expectativas. Ainda hoje considero que fui bem-aventurada nesta atribuição.
O que me trouxe a Endocrinologia? Gratidão, é o que me ocorre de imediato. Gratidão para com as pessoas com as quais me cruzei ao longo destes cerca de 35 anos e para com os doentes. Com os primeiros aprendi a importância da honestidade científica, do trabalho em equipa e do sentimento de pertença. Como é bem conhecido, sós vamos mais rápidos, mas juntos vamos mais longe. Com os doentes aprendi a importância da relação médico-doente, aquela que, a nível profissional, mais me completa.
Assim, ao longo destes anos, senti que um bom desempenho profissional não depende apenas da formação, mas igualmente do humanismo, do compromisso e do reconhecimento.
Sempre tive um contacto próximo com os mais jovens. Tentei transmitir-lhes estes valores que considero essenciais para exercer medicina e prestar os melhores cuidados às pessoas que frequentemente se encontram em situação de vulnerabilidade. Tentei fazê-lo pelo exemplo, porque quando se é jovem o que nos é dito só muito mais tarde é que é inteiramente compreendido.
Posso concluir que a relação com a Endocrinologia foi e é uma relação de ensinamentos para a vida, profissional e pessoal, e que a especialidade, em si, certamente que contribuiu para essa aprendizagem, mas que os fatores determinantes foram as pessoas com as quais tive a felicidade de me cruzar e com o facto de ser médica.
Agradeço, à equipa redatorial da Newsletter da SPEDM, terem-me proporcionado esta reflexão.