Newsletter da SPEDM

A Endocrinologia e Eu - Manuel Sobrinho-Simões

A Endocrinologia e Eu
Ed.
Abril 2022

Em Outubro de 1970, ainda aluno, recém-contratado como Monitor, além do quadro, da Faculdade (FMUP), o Prof. Daniel Serrão pôs-me a rever todo o material arquivado no Serviço com o diagnóstico de nódulo/tumor da tireoide. Assim fiz e os resultados foram apresentados na II Reunião Conjunta das Sociedades Portuguesa e Espanhola de Anatomia Patológica, em Outubro de 1971, organizada pelo Prof. Jorge Horta em Lisboa.

Na altura classificámos as lesões benignas como nódulo coloide, nódulos(s) adenomatoso(s) e adenoma. Os carcinomas diferenciados foram classificados como carcinoma folicular, carcinoma papilar e carcinoma misto folicular/papilar.

Cinquenta anos depois, agora que nos preparamos para publicar a 5ª edição dos Tumores Endócrinos da OMS (2022), reconhecemos que não conseguimos avançar tanto quanto gostaríamos. Concretamente, em relação às lesões benignas, depois de milhares de estudos sobre morfologia óptica e electrónica, imuno-histoquímica e genómica, estamos na mesma. Confesso que é um bocado vexatório que nem os estudos da clonalidade, nem a identificação de biomarcadores moleculares, hajam permitido distinguir o nódulo coloide, nódulo(s) adenomatoso(s) e adenoma com segurança. Infelizmente também não progredimos na avaliação do risco de malignização destas lesões. Não é o regresso ao passado de que fala o título porque continuamos parados no tempo. 

No domínio dos carcinomas diferenciados, as coisas progrediram inicialmente de forma espectacular, graças sobretudo a Lindsay e Rosai. Percebemos que as características nucleares das células neoplásicas eram mais importantes para a classificação como carcinoma papilar do que a arquitectura papilar ou folicular. Esta descoberta foi muito importante porque clarificou a associação entre o padrão de metastização ganglionar regional e o diagnóstico de carcinoma papilar, independente da arquitectura tecidular.

Quando em Março de 1979 participei, pela primeira vez, numa reunião da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia (Coimbra) já utilizei a tal classificação binária –  carcinoma folicular e carcinoma papilar. O carcinoma papilar incluía a forma clássica, exclusivamente papilar ou de padrão misto (papilar e folicular), e a neoplasia de arquitectura (quase) exclusivamente folicular, a que passámos a chamar variante folicular de carcinoma papilar.

Por estranho que pareça esta classificação “aguentou-se” durante muitos anos apesar da noção de que não fazia sentido não separar as formas encapsuladas das formas infiltrativas da variante folicular de carcinoma papilar. É quase inacreditável havermos mantido as características nucleares como a pedra-de-toque do diagnóstico carcinoma papilar, sem atentar na importância das características mais ou menos invasoras.

Só neste século começámos a perceber melhor a importância do padrão de crescimento – expansivo (bem circunscrito/encapsulado) ou infiltrativo –  e re-descobrimos o valor da invasão, nomeadamente a invasão de vasos linfáticos e de vasos venosos.

Os nossos trabalhos e os de muitos outros grupos mostraram que as características clinicas e moleculares das formas encapsuladas da variante folicular de carcinoma papilar são praticamente idênticas às dos carcinomas foliculares, enquanto as formas infiltrativas da variante folicular de carcinoma papilar se aproximam dos carcinomas papilares clássicos. Como passámos a prestar atenção ao significado clínico da invasão vascular em carcinomas diferenciados encapsulados, aumentámos a semelhança entre carcinoma folicular e forma encapsulada da variante folicular de carcinoma papilar, a ponto de retomar a ideia do “antigo” carcinoma folicular por oposição ao carcinoma papilar.

Fomos também suficientemente expeditos para inventar um nome despropositado – Non-invasive follicular thyroid neoplasm with papillary-like nuclear features (NIFTP) – onde albergámos as formas encapsuladas, não invasoras, da variante folicular de carcinoma papilar, que tem um prognóstico excelente e correspondem sempre, ou quase sempre, a adenomas.

Para já, por falta de evidência clínico-patológica à distância (follow-up insuficiente) e pela necessidade de amostragem apropriada da cápsula das lesões de tipo NIFTP para afastar a hipótese de invasão em carcinoma papilar, não tivemos coragem de lhe chamar adenoma e optámos pela designação Tumor. O mesmo ocorre, aliás, com os chamados Tumores foliculares “UMP” (uncertain e/ou unknown malignant potential). O problema deste diagnóstico também não depende do tipo de núcleos mas sim da incapacidade de identificar sinais de invasão inequívoca nestas neoplasias.

Confesso que acreditei que a brecha da nomenclatura criada por um grupo de Tumores da tireoide, considerados como neoplasias de (muito) baixo risco de malignidade (evitando chamar-lhes carcinoma), poderia ser usada finalmente para adoptar a “Porto proposal” em relação aos microcarcinomas papilares –microtumores papilares –  enquanto achado ocasional em peças de tireoidectomia por patologia benigna. Infelizmente tal não sucedeu e na próxima edição dos Tumores Endócrinos da OMS (2022) eles aparecerão como carcinomas papilares “assim ou assado”, com  2 ou 5mm ou… (<10mm).

Voltando ao título, prevejo que regressaremos mais cedo ou mais tarde à classificação binária carcinoma folicular e carcinoma papilar de há cinquenta anos, agora recheada de informações moleculares e com uma base notável em termos de etiopatogenia, prognóstico e terapêutica.