Newsletter da SPEDM

EndocrinArte - Elizabete Geraldes

EndocrinArte
Ed.
Janeiro 2022

Olá amigo Lima Reis,

Foi com estas palavras que respondeste a um e-mail meu sobre uma lista de pinturas caras leiloadas em Londres e Nova York…demonstrando um pendor social (humanista) perante a arte pictórica que nos apaixona e nos tem levado a enriquecedora troca de opiniões.

 


Figura – “Avestruzes Bailarinas”, Paula Rego (1995)

“Nenhum deles vale o bem-estar de uma família com filhos e, no entanto, aí estão para lavar dinheiro ou enaltecer o ego. Não dava dez tostões por nenhum deles embora me considere um amante de arte e sobretudo de pintura. Pergunto-me sempre quantas crianças esfomeadas passariam a anjinhos de Rubens e quantos pintores incógnitos que não desdenharia de mostrar nas paredes de minha casa teriam oportunidade de sobreviver?! Vivemos num mundo cão.”

Foi através da pintura que o Lima Reis me falou do contacto com as letras e livros através da mãe que tinha livros ilustrados por Gustave Doré. Foi por seu estímulo que aprofundei o estudo da História da Arte (hoje facilitada pela Net), assistindo virtualmente a excelentes conferências editadas pelos grandes museus mundiais e aulas por historiadores, especialmente brasileiros. O que leva os médicos a apaixonarem-se pelas artes, nomeadamente a pictórica? Será treinarem a semiologia perante “Las meninas” em que Diego Velázquez apresenta na primeira fila uma mulher acrondoplásica e um rapaz com nanismo hipofisário? Será as “Avestruzes Bailarinas” de Paula Rego sugestivas de hiperplasia da supra-renal? Será um tumor virilizante retratado por José de Ribera “La Mujer Barbuda” em que há referência à morte da personagem retratada passados três meses após a execução da pintura? Será o drama do aborto espontâneo retratado por Frida Kahlo?

Lima Reis, será por isto que a nossa classe adora a pintura?

Mas, além da pintura, sei que adoras as letras como provaste com livros publicados com títulos estimulantes “As Confidências da Bola de Cristal e Outras Histórias Assim”, “O Estranho Caso do Testículo Desautorizado e Outras Histórias Médicas”, “O Estranho Caso da Mulher Assanhada”, “A Lenda do Cavalo Branco E Outras Histórias Médicas” e outros livros sobre Nutrição e crónicas em jornais. Deixo aqui um excerto de uma deliciosa crónica que enviaste:          


“Quando as bocas são mais do que olhos.” (originalmente publicado em 2018)


- Tenho quinze bocas para comer. Quinze!

Eu, à distância, encostado ao tronco da cerejeira velha a ouvir apenas uma.

(…)

Quinze bocas, um monstro, um sorvedouro de almoços, merendas e ceias. Uma criatura atroz e insaciável tirada de pesadelos inimagináveis.

Pensava eu.

Onde esconderia ele as catorze que eu não via, que coro fariam quando pediam pão?

- O mais que posso fazer-lhe é empregar uma e pagar-lhe o que lhe pago a si.

- Empregue-me as gémeas e fique com elas pelo preço de uma.

O pai, que sim, que ficava, que as mandasse na próxima segunda-feira pela manhã

(…)

Quando entrei, sentado num banco e agitando a mão direita como quem rege o discurso, o pai contava a conversa que tivera com o caseiro e a mãe, de pé, encostada à banca ouvia-o com atenção, tanta que, quando tentei tornar-me também objecto dela, encostou o indicador à ponta do nariz dissuadindo-me.

Calado como um rato, fiquei a saber que o caseiro perdera as duas bocas que a mãe ganhara para juntar às que já tinha e que o pai só pagaria o trabalho de uma embora obtivesse mais quatro braços para auxiliar nas tarefas caseiras. Por outro lado o caseiro ficava com treze bocas para dar de comer e o dobro do ordenado para poder fazê-lo.

Como matemático aprendiz concluí através da conversa que, desse modo, as oito sardinhas que o senhor António costumava comprar para o almoço da família e das quais cabiam uma a ele e meia a todos os restantes, poderiam passar agora a ser dezasseis para treze bocas. As outras duas, as da Ana e da Lurdes, nascidas da mesma fornada com escassos minutos de intervalo e muito difíceis de distinguir fisicamente, passaram a comer em nossa casa por alguns anos com fome gémea e alegria tamanha.

Com a presença delas, dos seus relatos sinceros de meninas criadas com fome matada com honradez e do genuíno espanto com que se integravam numa existência diferente, aprendi muito para além do que nos transmite Van Gog na obra que se convencionou designar singelamente por comedores de batatas e percebi também o que significa para um pai ter em casa quinze bocas para comer e um corpo apenas para as sustentar.

As tuas imagens recordam-me o filme de Roberto Benigni “A Vida é Bela”. Um retrato de amor e sobrevivência.

 

Abraço amigo de Elizabete Geraldes