Newsletter da SPEDM

Tema de Capa - A perspetiva da Cirurgia Plástica

Tema de Capa
Ed.
Julho 2022

Atendendo à complexidade e à necessidade de intervenção em múltiplas vertentes, o tratamento das pessoas trans pressupõe uma abordagem multidisciplinar com envolvimento de Psiquiatras, Endocrinologistas, Cirurgiões Plásticos, Urologistas e Ginecologistas. O principal objectivo do tratamento psicoterapêutico, hormonal e cirúrgico é permitir atingir um bem-estar psicológico duradouro e uma sensação de conforto e auto-realização com o género assumido.

O processo de reatribuição cirúrgico não é obrigatório e não implica a realização de todos as intervenções cirúrgicas descritas, sendo uma opção individual da pessoa trans. Como condição para a realização das cirurgias é necessário realizar duas avaliações de Sexologia em centros idóneos e independentes e ter maioridade legal. À excepção da mastectomia, as restantes intervenções cirúrgicas ocorrem após período mínimo de 12 meses de terapêutica hormonal realizada de forma contínua.

Relativamente à cirurgia de reatribuição de sexo feminino-masculino, a mastectomia é, habitualmente, o primeiro procedimento cirúrgico, podendo ser realizada no mesmo tempo operatório da histerectomia e anexectomia bilateral. A mastectomia envolve a remoção da glândula mamária e do excesso cutâneo e adiposo e a redução e reposicionamento do complexo areolo-mamilar. A técnica cirúrgica utilizada depende essencialmente de três variáveis (elasticidade cutânea, volume e grau de ptose mamária). Quanto maior o volume e o grau de ptose mamária e menor a elasticidade cutânea, maiores serão as cicatrizes.

No que diz respeito à construção dos genitais externos, o utente poderá optar por realizar a metoidioplastia ou a faloplastia.

A metoidioplastia consiste na reconstrução do neofalo com o clítoris hormonalmente hipertrofiado e tem como objectivo permitir a micção na posição ortostática, mantendo a sensibilidade táctil e erógena do neofalo. Este procedimento cirúrgico baseia-se em princípios embriológicos, ou seja, na utilização de tecidos dos genitais externos com a mesma origem embrionária. Resumidamente, procedemos à rotação medial e transposição anterior com avanço em V-Y dos grandes lábios de forma a reconstruir o escroto e à transposição anterior do clítoris, que formará a glande. Para a uretroplastia são aproveitados retalhos da face interna dos pequenos lábios, por vezes associados a enxertos de mucosa jugal. A principal desvantagem da metoidioplastia são as pequenas dimensões do neofalo, que invalidam uma relação sexual com penetração.

A faloplastia pressupõe a construção de um pénis esteticamente aceitável, com sensibilidade táctil e erógena e que permita ao doente ter uma micção em pé, com um jacto normal e relações sexuais com penetração, sendo este último ponto a grande vantagem relativamente à metoidioplastia. A morbilidade da zona dadora deverá ser mínima. No entanto, atendendo à sua complexidade, este procedimento está associado a uma maior morbilidade, não existindo ainda um procedimento que satisfaça todos os requisitos da reconstrução apontados previamente. Ainda que estejam descritas diversas técnicas de faloplastia com recurso a retalhos fasciocutâneos e miocutâneos locoregionais, damos preferência à reconstrução com retalhos microcirúrgicos, nomeadamente com o retalho antebraquial radial. A reconstrução com retalho microcirúrgico antebraquial radial é realizada num único tempo operatório, utilizando a técnica “tube within a tube”, ou seja, a formação de um tubo interior que dará origem à uretra, sobre o qual é moldado um segundo tubo que formará o corpo do pénis. Este retalho tubular é transferido do antebraço para a região púbica através da aplicação de técnicas de microcirurgia, com anastomose da artéria radial e da veia cefálica a vasos locais (artéria femoral ou ramos colaterais e veia grande safena, ou veias tributárias). De forma a garantir a preservação da sensibilidade erógena, o clítoris é desepidermizado e transposto para a base do pénis e é realizada a neurorrafia entre o nervo dorsal do clítoris e um dos dois nervos sensitivos do retalho antebraquial radial. O segundo nervo sensitivo é coaptado ao nervo ilioinguinal. Por fim, é realizada a coronoplastia segundo a técnica de Horton.

O retalho anterolateral da coxa tem surgido nos últimos anos como uma alternativa válida ao retalho antebraquial radial, quer isoladamente, quer associado ao retalho SCIP (superficial circumflex iliac artery perforator flap) para reconstrução da uretra.

As próteses testiculares e peniana são colocadas após a recuperação da sensibilidade, cerca de 18 meses após a faloplastia.

Na cirurgia de reatribuição sexual masculino-feminino, a mamoplastia de aumento pressupõe a colocação de próteses mamárias ou, com menos frequência, a realização de lipofilling. São candidatas as mulheres trans com desenvolvimento mamário após 1 ano de terapia hormonal correspondente a um estadio de Tanner inferior ou igual a III.

A vaginoplastia e vulvoplastia têm como base os princípios embriológicos mencionados anteriormente. Relativamente à vaginoplastia, a técnica de eleição é a vaginoplastia com retalho penoescrotal invertido. Após a orquidectomia, procedemos à dissecção do pénis nos seus componentes anatómicos, os corpos cavernosos (que são excisados), o corpo esponjoso e a pele do pénis na forma de um retalho cutâneo tubular. O neoclítoris é formado a partir da face dorsal da glande, sendo dissecado juntamento com o rolo vasculonervoso, de forma a garantir a preservação da sensibilidade erógena e a sua viabilidade vascular. A loca vaginal é dissecada no plano muscular entre o recto e a bexiga, sendo posteriormente revestida pelo retalho cutâneo tubular invertido. Os grandes lábios são construídos com base em retalhos cutâneos escrotais.

A vaginoplastia com colon sigmoide ou ansa de jejuno vascularizada está reservada para casos secundários ou quando o tamanho do pénis é insuficiente (por exemplo, na frenação farmacológica da puberdade).