Newsletter da SPEDM

Tema de Capa - A perspetiva da Endocrinologia

Tema de Capa
Ed.
Julho 2022

Do ponto de vista da Endocrinologia, a Medicina Transgénero no adulto (com especial destaque para a Disforia de Género) levanta diversas questões, das quais salientaremos as seguintes:

  1. Diagnóstico: Um diagnóstico correcto de Disforia de género é crucial e indispensável para que o endocrinologista possa avançar para um eventual tratamento hormonal. É, por isso, indispensável que, antes de qualquer decisão do endocrinologista, haja um diagnóstico por parte da Psiquiatria-Sexologia que confirme o diagnóstico e que determine, caso a caso, se uma eventual terapêutica hormonal ‘cruzada’ beneficiaria, ou não, o indivíduo em causa.
  2. Rastreio de eventuais comorbilidades e/ou factores de risco: Uma vez confirmado o diagnóstico, cabe ao endocrinologista proceder a um exame físico cuidadoso, bem como à requisição dos necessários exames complementares de diagnóstico (incluindo o cariótipo), de forma a identificar atempadamente situações patológicas, ou factores de risco, que possam contraindicar o início (ou, pelo menos, o início imediato) de terapêuticas hormonais. Um dos factores de risco frequentemente encontrados neste contexto é o do uso de tabaco, nomeadamente em transgéneros femininos que pretendem iniciar estrogenoterapia, mas que desconhecem o aumento do risco tromboembólico associado à referida terapêutica em indivíduos que fumam.
  3. Gestão de expectativas e de complicações: A decisão de se iniciar terapêutica hormonal deve ser tomada em conjunto pela equipa médica e pelo indivíduo, o qual deve ser pormenorizadamente informado do que poderá esperar dessa terapêutica, bem como das complicações que dela poderão advir. A título de exemplo, refira-se a possibilidade de aparecimento, em transgéneros masculinos que iniciam testosterona, de zonas mais ou menos extensas de queda de cabelo (do tipo da alopécia androgenética), de aumento do hematócrito, etc. Já os transgéneros femininos que inicam terapêutica estrogénica e anti-androgénica devem ser advertidos relativamente ao risco de disfunção eréctil, que em muitos casos é bem-vinda, mas que, em certos casos (nomeadamente em trabalhadoras sexuais), poderá constituir um problema. Por outro lado, cabe ao endocrinologista ajudar o indivíduo a ser realista nas expectativas relacionadas com a terapêutica, de forma a evitar um problema, infelizmente muito comum neste grupo de indivíduos: a sobredosagem da medicação prescrita, na expectativa – ilusória e arriscada - de, assim, obterem resultados melhores e mais rápidos.
  4. A importância duma equipa médica motivada: Para além dos aspectos já referidos, importa salientar que a abordagem, o tratamento e o acompanhamento de doentes transgéneros devem ser feitos por uma equipa preparada e motivada, que não confunda disforia de género com um súbito capricho do indivíduo, nem encare o tratamento cirúrgico (por exemplo a mamoplastia em transgéneros femininos) como uma mera intervenção estética. Saliente-se, aliás, que nem todos os indivíduos transgéneros pretendem ser submetidos a cirurgias e que muitos pretendem apenas a ‘correcção’ cirúrgica de aspectos anatómicos socialmente mais evidentes (por exemplo, transgéneros masculinos que pretendem ser submetidos apenas a mastectomia).
  5. Conclusão: A Medicina Transgénero tem vindo a assumir uma relevância crescente a nível mundial, particularmente nos países em que não é exercida repressão sobre estes indivíduos. Essa crescente relevância, também traduzida numa maior visibilidade mediática e social destes indivíduos, bem como numa progressiva ‘normalização’ destas situações, tem criado desafios cada vez mais complexos aos médicos que acompanham este casos. Com efeito, à urgência do indivíduo transgénero devem os médicos contrapor o bom senso, as preocupações éticas e deontológicas e, sobretudo, a preocupação com o futuro de cada um dos indivíduos. Não existe, é certo, uma única forma de abordar o indivíduo transgénero, mas deve existir, sem dúvida, uma preocupação constante de todos os médicos: primum non nocere (ou seja, em primeiro lugar, não causar dano).