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Tema de Capa - Do Deep Blue ao DeepFlow: O Impacto Crescente da Inteligência Artificial na Medicina - Bruna Gomes

Tema de Capa
Ed.
Outubro 2023

Do Deep Blue ao DeepFlow: O Impacto Crescente da Inteligência Artificial na Medicina

Aplicações de inteligência artificial (IA) não são novas. Um exemplo pioneiro e emblemático foi o programa de xadrez "Deep Blue" da IBM(Hsu 2002), que em 1997 conseguiu derrotar o campeão mundial, Garry Kasparov, numa partida histórica. Ainda assim, é inegável que, mais recentemente, o impacto da IA tornou-se muito mais palpável na nossa vida quotidiana. Desde o reconhecimento automático de faces até aos veículos autónomos (self-driving), estas aplicações têm-se tornado mais presentes e inseparáveis da nossa atividade diária.

Como cardiologista-investigadora, tenho vivenciado um enorme impacto da inteligência artificial na minha vida profissional. O reconhecimento automático dos contornos do ventrículo esquerdo nas imagens de ressonância magnética, por exemplo, tem me poupado horas de trabalho manual de segmentação. Já a aplicação quase diária de algoritmos de "deep learning" na minha investigação, que inclui conversas frequentes com o ChatGPT para revisão e design dos meus algoritmos, tornou-se uma ferramenta indispensável.

No contexto da inteligência artificial, é relevante distinguir alguns conceitos. A inteligência artificial é o campo que permite a algoritmos de software simular a inteligência humana. Dentro da IA, temos o "machine learning", que é um subcampo onde algoritmos são treinados para aprender a partir de bases de dados, melhorando o seu desempenho numa tarefa específica, sem serem explicitamente programados para essa tarefa. "Deep learning", por sua vez, é uma subcategoria do "machine learning", inspirada nas redes neurais do cérebro, sendo especialmente útil em tarefas que envolvem grandes volumes de dados, como reconhecimento de imagem e voz.

Motivada pelas promissoras aplicações da inteligência artificial, iniciei de forma autodidata o estudo da linguagem de programação Python em 2018, na Universidade de Heidelberg, durante os meus últimos anos de especialidade em cardiologia. Comecei por escrever um algoritmo simples para distinguir cães de gatos, evoluindo posteriormente para identificar diferentes tipos de próteses valvulares em angiogramas. Três anos depois, já na Universidade de Stanford, criei o DeepFlow(Gomes et al. 2022), um software que extrai vários parâmetros aórticos e cardíacos de imagens de ressonância magnética. Em poucas palavras, o software utiliza uma U-Net, um algoritmo de codificador-decodificador, que identifica a região aórtica na imagem cardíaca de ressonância magnética e devolve várias variáveis dependentes do fluxo, incluindo a velocidade máxima do fluxo sanguíneo aórtico ou o volume de regurgitação aórtica. Este último parâmetro é essencial para quantificar a insuficiência aórtica, uma patologia valvular cardíaca. Através dele, pude analisar o vasto banco de dados do UK Biobank, identificando as variantes genéticas associadas à insuficiência aórtica. Este trabalho, atualmente em revisão na revista científica Nature Genetics, é só um exemplo de como a inteligência artificial tem sido fundamental para descobertas científicas baseadas em dados multimodais. Dado que o UK Biobank integra datasets de proteómica e metabolómica e, aliado à rápida evolução das técnicas assentes em inteligência artificial, as oportunidades para investigação interdisciplinar que cruza a endocrinologia e a cardiologia são imensas. Por exemplo, em cardiomiopatia diabética: através da criação de modelos de previsão clínica multimodal, que utilizam imagens cardíacas e perfil molecular, com o objetivo de avançar para uma medicina mais personalizada.

O crescimento exponencial das aplicações multimodais e multi-moleculares de IA é notório. No entanto, os primeiros ensaios clínicos randomizados que avaliam o impacto do uso de algoritmos na práctica clínica ainda estão a dar os primeiros passos(Lam et al. 2022). Há desafios significativos em traduzir as descobertas a nível populacional para decisões individualizadas em medicina. Cientistas e médicos precisam de trabalhar em conjunto para superar essas barreiras. É com muito entusiasmo que assisto ao o avanço acelerado da inteligência artificial em diversos campos da biomedicina. Desde publicacao do meu artigo e co-escrito pelo meu mentor Prof. Ashley da Universidade de Stanford no New England Journal of Medicine sobre as aplicações de IA em medicina molecular(Gomes and Ashley 2023), observa-se um desenvolvimento significativo em aplicações de modelos transformers (um submodelo de deep learning) e large language models (como o que suporta o ChatGPT) à biologia(Singhal et al. 2023), abrangendo desde a previsão da funcao de variantes genéticas(Dalla-Torre et al. 2023) até a descoberta de novos conceitos para medicamentos.

Referências:

Dalla-Torre, Hugo, Liam Gonzalez, Javier Mendoza-Revilla, Nicolas Lopez Carranza, Adam Henryk Grzywaczewski, Francesco Oteri, Christian Dallago, et al. 2023. “The Nucleotide Transformer: Building and Evaluating Robust Foundation Models for Human Genomics.” bioRxiv. https://doi.org/10.1101/2023.01.11.523679.

Gomes, Bruna, and Euan A. Ashley. 2023. “Artificial Intelligence in Molecular Medicine.” The New England Journal of Medicine 388 (26): 2456–65.

Gomes, Bruna, Aditya Singh, Jack W. O’Sullivan, David Amar, Mykhailo Kostur, Francois Haddad, Michael Salerno, Victoria N. Parikh, Benjamin Meder, and Euan A. Ashley. 2022. “Genetic Architecture of Cardiac Dynamic Flow Volumes.” bioRxiv. https://doi.org/10.1101/2022.10.05.22280733.

Hsu, Feng-Hsiung. 2002. Behind Deep Blue: Building the Computer That Defeated the World Chess Champion. Princeton University Press.

Lam, Thomas Y. T., Max F. K. Cheung, Yasmin L. Munro, Kong Meng Lim, Dennis Shung, and Joseph J. Y. Sung. 2022. “Randomized Controlled Trials of Artificial Intelligence in Clinical Practice: Systematic Review.” Journal of Medical Internet Research 24 (8): e37188.

Singhal, Karan, Shekoofeh Azizi, Tao Tu, S. Sara Mahdavi, Jason Wei, Hyung Won Chung, Nathan Scales, et al. 2023. “Large Language Models Encode Clinical Knowledge.”