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Tema de Capa - Inteligência artificial na Medicina e na Endocrinologia: onde estamos e o que esperar? - Bernardo Dias Pereira

Tema de Capa
Ed.
Outubro 2023

Inteligência artificial na Medicina e na Endocrinologia: onde estamos e o que esperar?

A inteligência artificial (IA) reporta-se a qualquer entidade não natural que executa tarefas que requerem tipicamente o uso da inteligência humana. Opera com base em diferentes tipos de aprendizagem automática (machine learning), isto é, algoritmos que se distinguem dos modelos estatísticos convencionais pela sua capacidade de aprender, racionalizar e autocorrigir-se sem programação humana adicional. Os dispositivos de IA têm capacidade praticamente ilimitada de processamento de uma multiplicidade de dados, integração de novo conhecimento e aperfeiçoamento dos seus resultados de forma expeditamente inacessível à capacidade humana. Esta aprendizagem automática ocorre independentemente de influências sociais, culturais ou institucionais, potenciando a objectividade do raciocínio clínico. Até hoje, foram aprovados pela U.S. Food and Drug Administration mais de 200 produtos baseados em IA para uso clínico, enquanto que na União Europeia, apesar de não existir aprovação por uma entidade reguladora da saúde, múltiplos destes produtos já receberam autorização para comercialização.  Na Endocrinologia, estão disponíveis para implementação na prática clínica diversos produtos baseados em IA. A título de exemplo: 1) na patologia tiroideia, o AmCAD-UT® analisa padrões de pixels de imagens de ecografia não aparentes ao olho humano, fornecendo a probabilidade da presença de características de suspeição clássicas dos nódulos tiroideus, permitindo assim ao clínico otimizar a classificação final (e.g., TI-RADS) destes nódulos; 2) na Diabetes, o algoritmo de aprendizagem automática DreaMed Advisor Pro, integrado no sistema MinimedTM 780G, utiliza dados de glicose em tempo real, de farmacocinética da insulina e dados da bomba de insulina (insulina ativa, tempos de refeição, etc.) para gerar automaticamente doses de insulina para perfusão basal e para bólus de correção. Diversos outros produtos baseados em IA estão em desenvolvimento e teste para suporte ao Endocrinologista na abordagem de patologias das várias glândulas endócrinas humanas.

Esta nova realidade, apesar de se revestir de múltiplos benefícios na prática clínica, levanta também diversas questões que deverão ser abordadas antes da implementação mais ampla na prática clínica, das quais elenco algumas. Não há, de momento, qualquer legislação específica para dispositivos de IA para uso clínico na Europa, e há diversos algoritmos de IA que necessitam de aceder e manipular uma multiplicidade de dados pessoais dos utentes para formulação do resultado desejado, acesso esse que pode ser eticamente inadequado e/ou incompatível com a legislação nacional de proteção de dados.

O intuito de fabricantes privados ao projetarem dispositivos de IA para uso clínico pode também levantar algumas preocupações. Dada a importância dos indicadores de qualidade na prestação de cuidados de saúde para auditorias, acreditações e financiamento às instituições públicas e privadas, poderá haver a tentação para a criação de algoritmos de aprendizagem automática que auxiliem a decisão clínica orientada para melhores métricas de qualidade clínica prestada, as quais possam não constituir propriamente melhores cuidados de saúde para o utente em questão.

Com o crescimento das instituições privadas de saúde em Portugal, há a permanente questão da maximização dos lucros, mas em diversos casos clínicos individuais poderá não ser possível compatibilizar esses lucros com a abordagem clínica no melhor interesse do doente, gerando tensão no médico decisor. Esta tensão necessita de ser reconhecida na conceptualização de novos algoritmos de decisão clínica baseada em IA, visto que a decisão final na gestão da saúde do doente não cabe aos seus fabricantes nem a quem os vai adquirir, e sim ao médico que interage com estes algoritmos.

A substituição total do clínico por dispostos de IA é também temática sempre presente. Médico e doente concentram em si experiência de vida que integra relações humanas (a começar pelo papel da mãe nos primeiros 2 anos de vida), emoções, linguagem verbal e não-verbal, sentido de si e de finitude, e todo o conhecimento e convenções humanas mais ou menos aprofundados por cada um. Esta riqueza humana é a base para a compreensão holística da pessoa que consulta o médico. A doença tem uma componente subjetiva que, de momento, não pode ser cuidada por uma intervenção tecnológica, e a história da Medicina prova-nos que há um efeito terapêutico na relação médico-doente que é independente da terapêutica prescrita. Isto acontece porque a relação médico-doente é uma relação entre seres humanos, ambos sensíveis à doença e à morte. Será possível construir algoritmos capazes de integrar todo este conhecimento e substituir a relação humana médico-doente, decidindo pelo melhor interesse da pessoa na abordagem diagnóstica e terapêutica da sua doença?

Num futuro próximo prevê-se a plena implementação da IA na Medicina. Desta interação com a IA, será desejável um equilíbrio entre as faculdades tecnológicas que excedem a capacidade humana e as faculdades da condição humana para já inacessíveis à IA, a fim de maximizar o ganho individual de cada pessoa em processo de doença.

Referências: BMJ. 2018; 7:363:k4563; N Engl J Med. 2018;15;378:981-983; Front Endocrinol (Lausanne). 2019;28;10:185; Nat Rev Endocrinol. 2022;18(2):81-95; Nat Rev Endocrinol. 2023;19(7):375-376.