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Tema de Capa - Joana Menezes Nunes

Tema de Capa
Ed.
Outubro 2022

No dia a seguir a ter feito o exame final do internato médico de endocrinologia, apresentei a minha carta de despedida do SNS, escrita à mão, datada de 29 de outubro de 2015, que ainda guardo e guardarei, uma espécie de sentimento agridoce. “Agri”, porque sempre me imaginei a trabalhar e envelhecer na minha “segunda casa” e teria ficado, se as condições fossem diferentes (ainda hoje tenho saudades do frenesim, da amizade e do companheirismo, das reuniões de serviço, da resistência e da resiliência, algo que estranhamente se entranha e que nos faz querer voltar). E “doce” porque tinha projetos, ideias e planos de uma medicina “melhor” do ponto de vista de qualidade de vida. E quando falo em qualidade de vida desengane-se o que acha que se tratava apenas de cifrões (porque, trabalhando na privada sem contrato e com a mesma dita qualidade de vida, que é o meu caso, com a carga fiscal, os descontos salariais, o seguro de acidentes de trabalho e outros custos inerentes, sobra sim uma verba mais alta e merecida mas com o custo da ausência da segurança contratual de um funcionário público e com o esforço acrescido de “estar sozinho”, a trabalhar sozinho, sem um Serviço e, como tal, com a necessidade constante de busca de atualizações e novidades científicas porque, estando cada um por si, a atualização científica dependerá obviamente de cada um – e na medicina, não nos atualizarmos é pura e simplesmente ficarmos para trás). Tratava-se disso mesmo, qualidade de vida, tempo para nós, tempo para a família e amigos, tempo para estudar, tempo para trabalhar, tempo para viver, tempo para ir mais devagar e com mais calma no dia-a-dia, sem a sensação de corda sempre esticada e sem o excesso de trabalho que acaba sempre por sobrar para os que mais se preocupam. Além disso, mais tempo para os doentes, na consulta e à distância, mais tempo para ouvir e ser ouvido, mais tempo para fazer uma medicina como acredito que deva ser (porque quantidade não é qualidade e porque tratamos pessoas e não exames, nem ecrãs de computadores, e as pessoas trazem com elas na bagagem dúvidas, receios e anseios).


Comecei sem contrato, em hospitais privados, com uma consulta que me dava gozo fazer, com tempo de qualidade para mim e para quem me procurava (estipulei o meu horário e os meus tempos de consulta). Ouvi muito os meus doentes, fui fazendo material para a minha consulta, elaborando textos informativos para as dúvidas mais frequentes (sim, tinha tempo para isso e ainda para responder a emails com dúvidas). Depois veio o facebook/instagram para contactar melhor com as pessoas à distância e depois o site. Fui crescendo sem ter traçado uma rota específica para isso, foi algo que foi fluindo, naturalmente.


Quando parámos devido à pandemia covid-19, aproveitei a pausa para criar mais textos e conteúdos digitais e percebi que tinha material para um livro com respostas às questões que me foram colocando ao longo de todos estes anos. E assim surgiu “do XL ao S”. Enviei o rascunho do livro para a Bertrand e no mesmo dia tive a resposta positiva do meu Editor Rui Couceiro que estava deveras entusiasmado, o que me deu ainda mais alento e propósito.


Hoje, tenho ainda mais projetos, planos e ideias. Tenho tantos que não cabem neste pequeno texto, desde centros de consulta multidisciplinar, aplicações para telemóveis, podcasts, tudo no sentido de melhor informar, melhor tratar e melhor cuidar – enfim, uma medicina com melhor qualidade de vida, para mim e para o doente. Bem feitas as contas, ao fim destes 5 anos, posso dizer que o balanço foi positivamente agridoce. “Doce” pelos frutos e pela realização, pelo reconhecimento dos meus doentes e dos pares, pela sensação de dever cumprido e pelos novos projetos que vão surgindo. “Agri” pela saudade dos tempos no SNS e pelo declínio a que assisto, impávida e tristemente, a cada dia que passa.