Um céu estrelado para o ritmo circadiano
O conhecimento atual relativo à sensibilidade dos seres vivos à luz tornou a antiga definição de poluição luminosa – “luz artificial em excesso” – obsoleta. Na maioria das espécies estudadas, animais e vegetais, a exposição a luz artificial à noite revelou ter impactos negativos. Poluição luminosa é, assim, simplesmente “luz artificial à noite”. Varia apenas o grau de impacto consoante a espécie, incluindo o ser humano. De facto, mesmo uma ténue luz pode ter impactos. Repare-se no próprio adjetivo, “ténue”: poderá sê-lo para o ser humano, mas não para um inseto, por exemplo, como um pirilampo, sensível a pequenas quantidades de luz. A luz artificial à noite é, assim, reconhecida como um poluente. E abusamos dela.
A História está repleta de exemplos em que a pressa, aliada a interesses económicos, de utilização de tecnologias “eficientes”, “revolucionárias”, acarretou impactos importantes: do amianto aos combustíveis fósseis, a lista é grande. O fim da noite (escura) é outra dessas consequências. O aumento da eficiência na iluminação foi responsável pelo gradual incremento da luz na atmosfera: optou-se por emitir mais gastando menos, em vez de aproveitar-se para emitir o mesmo – ou menos – gastando menos. Hoje, temos os díodos emissores de luz, os LED, em crescimento veloz. Como resultado deste caminho, o céu estrelado desapareceu das cidades e degradou-se nas zonas mais remotas, unicamente por não estar ainda nas preocupações de uma sociedade deslumbrada com o desenvolvimento tecnológico. Contudo, a noite escura é também um indicador de boa qualidade ambiental e o seu restauro uma prioridade.
Mas, afinal, qual a relação de um céu estrelado com a endocrinologia? Recuemos até ao início do século XXI, altura em que se descobriu que o olho humano, como os de outros animais, possui ipRGC (células ganglionares retinianas intrinsecamente fotossensíveis), que contêm melanopsina e são as recetoras retinianas responsáveis pela comunicação ao núcleo supraquiasmático (NSQ) da presença ou não de luz no ambiente, informação então transmitida até à glândula pineal. A chegada, ao final do dia, da luz solar mais atenuada e de maior comprimento de onda, como os laranjas e os vermelhos, dá o sinal, via ipRGC, ao NSQ – o relógio central que regula todos os restantes osciladores cerebrais e periféricos distribuídos pelos órgãos e tecidos do corpo humano –, para que a glândula pineal comece a produzir melatonina, a “hormona do escuro”. O pico de produção ocorre por volta das 2-3h da madrugada, decaindo até ao nascer do sol. A luz artificial à noite confunde, assim, o ciclo natural e inibe a produção de melatonina ou provoca desfasamento na curva de resposta, com graus de inibição ou desfasamento que variam de indivíduo para indivíduo, dependem da hora da exposição, da quantidade de luz, dos comprimentos de onda presentes... Sabe-se que a maior sensibilidade espectral ocorre nos comprimentos de onda correspondentes ao azul, o que não será uma surpresa se nos lembrarmos que, de dia, é a tonalidade que domina e nos mantém ativos. Por infelicidade, coincide com um dos picos de emissão dos LED brancos, presentes dos ecrãs de computadores e telemóveis à iluminação pública. Ainda que qualquer luz à noite, de qualquer comprimento de onda, seja potencialmente prejudicial, o princípio da precaução deveria desde logo fazer-nos ponderar no uso que damos aos LED.
Graças à investigação, voltámos a “descobrir” a nossa condição de seres fisiologicamente dependentes de ciclos astronómicos. Tentámos, nas sociedades 24/7, ludibriar o ritmo circadiano e ignorar a necessidade do sono e do escuro. Mas a ciência mostra que não escapamos à nossa condição ancestral de seres vivos num planeta que roda em 24h. A vida na Terra depende tanto do dia como da noite.